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Angola rural passou por décadas de provações com a guerra e a marginalização económica – culminando com a actual crise económica. Este resumo diz respeito a dez comunidades rurais na província de Malanje, mostrando que a pobreza material é tão profunda que as pessoas voltaram às práticas tradicionais e ao comércio de troca directa numa economia próxima da pura subsistência e que os serviços sociais básicos de educação e saúde são praticamente inexistentes. Como afirmou um homem: “O Governo não nos dá nenhum apoio!

Este resumo é do projecto de investigação “Cooperação sobre Investigação e Desenvolvimento em Angola” entre a UCAN/CEIC e o CMI, e do seu sub-projecto “Dinâmica da Pobreza Urbana e Rural”. Este documento baseia-se no trabalho de campo qualitativo/participativo realizado na província de Malanje com o objectivo de compreender as percepções das pessoas, as suas experiências e as dinâmicas da pobreza e bem-estar.

Em colaboração com Osvaldo Silva, Eyolf Jul-Larsen, Mateus Bine Agostinho and Iselin Åsedotter Strønen.

Introdução

A província de Malanje e o Município de Kalandula localizam-se no nordeste de Angola. A sua fama é grandemente baseada no facto de terem a segunda maior catarata de África mas, em oposição às suas equivalentes no continente, dificilmente se encontra qualquer actividade económica a ela dedicada. A sede do Município e as suas cinco comunas rurais (ver o Mapa) dão uma impressão imediata de falta de esperança e depressão económica – exemplificadas pela escassez de estabelecimentos comerciais, mercados quase vazios, construções precárias, más estradas e crianças nos espaços públicos a meio do dia em vez de estarem na escola. Os números socioeconómicos testemunham uma situação quase impossível para a grande maioria das 80.000 pessoas que vivem em Kalandula – mas a maior parte delas de algum modo ainda se aguentam.

Antecedentes

Em termos gerais a pobreza rural em Angola é grave. As estatísticas oficiais revelam uma taxa de pobreza rural de 58%, por oposição a uma taxa urbana de 19% (INE 2013). No entanto as estatísticas sobre a pobreza em Angola são geralmente consideradas como não sendo de confiança e subestimadas e os dados socioeconómicos mais específicos indicam uma situação ainda mais grave.

A participação formal em cerca de 79% de pessoas no mercado de trabalho rural esconde o facto de a grande maioria da população rural de Angola depender da produção agrícola de subsistência, com muito poucas opções de geração de rendimento. A taxa de mortalidade infantil rural é de 218/1.000, o que é um sinal multidimensional de pobreza e destituição de bens. E, embora as estatísticas oficiais digam que 64% de todas as crianças rurais vão à escola, apenas 41% dos homens e mulheres no meio rurais sabem ler e escrever (Ibidem).

A Província de Malanje não é excepção. De acordo com os relatórios oficiais (INE 2016), os indicadores de pobreza relacionados com emprego, saúde, educação e acesso a serviços básicos são muito críticos (ver tabela). Além disso, na altura do nosso trabalho de campo, a crise angolana resultante da queda do preço do petróleo conduziu a dificuldades ainda maiores. Os preços dos produtos básicos subiram subitamente e os bens tornaram-se mais escassos e os já fracos serviços públicos de educação e saúde ficaram à beira do colapso.

Tabela: Dados Sócio-económicos Básicos sobre Malanje

Malanje

2008/2009

2014/2015

Incidência de Pobreza (%)

62

Tamanho do agregado familiar

4,7

5,0

Rácio homens/mulheres

95/100

Participação de força de trabalho (%)

60

Habitações inadequadas (%)

96

60

Acesso a água satisfatória (%)

52

51

Acesso a telemóveis (%)

28

27

Taxa de conclusão escolar 6-17 anos (%)

35

Taxa de mortalidade de crianças menores de 5 anos /’000

230/1000*

Registo civil (%)

35


*Taxa de mortalidade infantil national/áreas rurais (UNICEF 2015)

Economia Política

A pobreza e o bem-estar em municípios rurais e agrícolas como Kalandula não são só o resultado das forças contemporâneas de marginalização políticas e económicas, mas também da sua história. No que respeita a Kalandula, as forças históricas mais importantes são o legado colonial de exploração, os longos períodos de guerra a seguir à independência em 1975 e a marginalização de facto das comunidades rurais pelo governo actual – tudo experiências vividas por uma grande parte da população.

A posição marginal de Malanje/Kalandula na economia política de Angola tem implicações importantes para a economia política local. As pessoas dependem quase que exclusivamente da produção agrícola rudimentar, o poder de compra e a base para actividades económicas informais são muito fracos e as pessoas dependem dos comerciantes de Luanda para os bens mais básicos.

Embora intrinsecamente ligada a Luanda através do controlo e clientelismo do governo do MPLA, a administração municipal é caracterizada pelas fracas estruturas organizacionais e competência e pelos recursos económicos muito limitados. Num sistema que luta com fundos limitados, as intervenções a favor dos pobres são as que mais sofreram. Não obstante o estabelecimento de um Programa de Redução da Pobreza, os fundos limitados transferidos pelo governo central têm sido sistematicamente alocados a outros fins ou desapareceram.

A falta de recursos conduziu também a um colapso de facto dos serviços sociais de educação e saúde. A população rural a viver fora da sede do município dificilmente tem acesso à escola primária, há um problema constante de absenteísmo dos professores e a maioria das escolas nas aldeias são precárias e dirigidas pela própria comunidade – quando existem. Há apenas uma escola secundária pública no município.

Kalandula tem um hospital e quatro centros de saúde, mas não há pessoal de saúde nas aldeias onde vive a grande maioria da população. Para a maioria das pessoas a unidade sanitária mais próxima fica a 10-15 kms de distância, forçando-as a depender cada vez mais dos médicos/parteiras tradicionais e dos medicamentos tradicionais.

O reverso da má governação e dos recursos limitados é a corrupção – não o tipo de corrupção em grande escala que caracteriza os centros urbanos e as classes mais altas de Angola, mas a corrupção em pequena escala a que as pessoas chamam ‘gasosa’. Para as pessoas pobres em Kalandula isto é vivido mais directamente e é devastador, tendo impacto sobre as necessidades mais básicas incluindo educação, saúde e documentos de identidade.

O colapso dos serviços públicos tornou os poucos actores não estatais cada vez mais importantes, em particular a Igreja Católica, que presta serviços de educação e saúde, e a ADRA, uma ONG nacional que presta serviços de desenvolvimento rural/agricultura – mas estão longe de preencher o vazio nas comunas mais distantes.

Dinâmicas da Pobreza

Como é que as pessoas sobrevivem nestas condições? A análise que se segue baseia-se na informação recolhida em dez comunidades locais no município de Kalandula (ver o Mapa), num conjunto de metodologias qualitativas e em entrevistas formais/informais com detentores do poder locais (funcionários públicos, líderes tradicionais/sobas, representantes da sociedade civil), bem como com homens, mulheres e jovens das comunidades.

As aldeias em Kalandula concentram-se ao longo de estradas de terra, geralmente na proximidade de um rio ou riacho e com os campos localizados a distâncias variáveis do local onde as pessoas vivem. Para além das habitações, geralmente feitas de adobe queimado e capim, o exercício de Mapeamento da Comunidade revelou que todas as aldeias incluem um pólo à volta da habitação do líder tradicional ou soba, um grande número de igrejas de diferentes congregações, uma escola primária rudimentar, um ponto de água (geralmente o rio) e, em alguns casos, um pequeno estabelecimento comercial – frequentemente sem quaisquer produtos.

As 460 aldeias registadas em Kalandula são tipicamente constituídas por uma população que varia entre 600 e 50 habitantes, com excepção de Kalandula Sede com 16.400. Embora a população tenha reduzido dramaticamente durante a guerra (50% entre 1973 e 2002, Administração Municipal de Kalandula 2013: 18), duplicou desde 2003, passando para 80.000 pessoas devido ao aumento natural e também à crise urbana em Luanda que fez com que menos pessoas saíssem de Kalandula e algumas regressassem (Tvedten e Lázaro 2016). 

Adaptações Económicas

A agricultura é a espinha dorsal e o modo de vida das pessoas em Kalandula, e ainda mais actualmente do que há alguns anos atrás: as relações historicamente importantes com os principais centros urbanos - cidades de Malanje e Luanda - estão praticamente interrompidas porque as pessoas não podem custear a viagem, são demasiado pobres para investir no comércio e compreendem que as condições, particularmente em Luanda, são extremamente difíceis.

A produção agrícola é rudimentar e só são usadas as ferramentas agrícolas mais simples (machados, catanas, enxadas). Ao mesmo tempo há um amplo acesso a terra irrigada pela chuva, a qual formalmente é propriedade do soba mas efectivamente é controlada pela família que originalmente a ocupou. Algumas famílias usam também terras húmidas ou hortas próximas dos rios.

O que determina o quanto as pessoas podem produzir é o seu acesso a/controlo da mão-de-obra. As principais fases da produção (limpeza da terra, plantio, mondar as ervas daninhas e colheita) são de trabalho intensivo e, em parte para minimizar o trabalho, a mandioca é de longe a cultura mais comum. Uma grande variedade de culturas é produzida nas hortas, mas estas são mais trabalhosas e consomem mais tempo e não têm as mesmas conotações culturais profundas que tem a terra irrigada pela chuva.

Para a maioria dos agregados familiares das comunidades, a produção dificilmente é suficiente para os alimentar. Quando as pessoas têm de vender ou trocar o seu bombó (farinha de mandioca), muitas vezes é para cobrir despesas absolutamente necessárias com doenças, funerais ou outras crises – sabendo bem que isso será compensado por períodos de fome.

Os muito pobres e mais destituídos nas comunidades são os que não têm acesso suficiente a mão-de-obra (frequentemente, mas não sempre, são agregados familiares mono-parentais, idosos e incapacitados) e têm de mendigar ou de trabalhar para os outros para sobreviverem. Trabalhar nos terrenos de outros não significa apenas ser extremamente mal pago (geralmente em espécie), mas também uma violação da própria essência de ser um membro da comunidade.

Excepto para os funcionários do sector público, que têm salários fixos, muito poucas pessoas em Kalandula têm acesso a outras fontes de emprego e rendimento. Algumas conseguiram manter relações com os centros urbanos e estão envolvidas no comércio rural-urbano de bombó e produtos básicos. Outras tentativas de geração de rendimento, como por exemplo a abertura de pequenas bancas de mercado, a compra de motocicletas para transporte ou a abertura de um negócio de cabeleireiro, normalmente falham – simplesmente porque o mercado/poder de compra em Kalandula é limitado.

Estratégias dos Agregados Familiares

Para a maioria dos agregados familiares em Kalandula e dos seus membros, sair da pobreza é praticamente impossível nas circunstâncias actuais. No exercício de Classificação da Riqueza, as pessoas distinguiram dois níveis principais de pobreza – os pobres (ngadiama) e os muito pobres/destituídos (kukunhi). Mesmo em relação aos pobres que conseguem produzir um excedente, a opção de ascender a uma das duas categorias de “ricos” (nguenje e juama), associadas à vida nas cidades, não é vista como realista.

Tradicionalmente a economia, bem como a vida social, organiza-se em torno do sistema de parentesco matrilinear e da família alargada, mas a guerra, a migração e as dificuldades económicas reduziram a rede familiar e fizeram do agregado familiar individual a principal unidade socioeconómica. Sendo pequeno (com uma média de quatro membros, Administração Municipal de Kalandula 2013:18), o agregado familiar individual é também muito vulnerável a choques súbitos como más colheitas e doenças. 

A maioria dos agregados familiares consome praticamente todo o seu tempo no trabalho agrícola, sendo a carga especialmente pesada para as mulheres que executam a maioria dos trabalhos para além das tarefas domésticas. Ser mãe solteira é visto como uma má alternativa, dado que normalmente implica falta de mão-de-obra masculina, tornando muito difícil para as mulheres voltarem a casar-se, o que facilmente leva ao estigma de ser ‘prostituta’. As mulheres em relações polígamas trabalham as suas próprias lavras, mas geralmente têm acesso a mão-de-obra masculina.

Ainda se espera dos homens que tragam rendimento para o agregado familiar mas as suas opções para além da agricultura são muito limitadas. O comércio baseado na comunidade dificilmente tem clientes e o tipo mais comum de trabalho – como o de pedreiro – é raro e mal pago. A alternativa mais importante é o comércio com Luanda ou outros centros urbanos, mas está vedada à maioria dos homens simplesmente por não conseguirem pagar a viagem e muito menos a acomodação.

Os jovens encontram-se frequentemente na situação mais difícil. Muitos deles foram expostos a um estilo de vida diferente em Luanda ou através dos órgãos de comunicação social, mas foram forçados a permanecer em comunidades rurais que apenas oferecem uma vida similar à dos seus pais. Os pais queixam-se que os seus filhos não querem trabalhar na agricultura, mas acabam por ser compelidos a ganhar a vida e constituir família – repetindo assim o ciclo.

Apesar do alto nível de pobreza e de precisarem de satisfazer as necessidades imediatas de alimentação e abrigo, as pessoas ainda fazem esforços para melhorar as suas perspectivas de futuro. Há tentativas de revitalizar as tradições de trabalho agrícola colectivo (kisole). Mandam as suas crianças à escola pagando a professores particulares locais ou fazendo-as caminhar até 10 kms por dia para irem à escola mais próxima. Formam comités comunitários para remediar a falta de serviços públicos de saúde, incluindo a organização do transporte de pessoas muito doentes (frequentemente amarrando-as ao condutor de uma motorizada…) ou regressando à medicina tradicional.

No entanto, com a actual falta de dinheiro e de serviços sociais básicos, tem aumentado o sentimento generalizado de falta de esperança. Embora muitas pessoas tenham manifestado raiva e frustração ao conversarem connosco, esse ressentimento raramente é expresso publicamente devido ao receio de retaliações por parte dos detentores do poder local. As excepções surgem quando as pessoas sentem que a sua própria existência está ameaçada, como quando a terra da comunidade foi vendida pelos sobas a detentores do poder externos para a criação de empresas agrícolas ou fazendas. Num caso, a invasão da terra e a recusa de se registarem como trabalhadores acabou por forçar o general em questão a desistir do seu plano.

Mas para a maioria das pessoas em Kalandula trata-se de uma questão de aprender a viver com a extrema pobreza com que nos deparámos. Muitos idosos, que se lembram das guerras até 2002, quando viviam em constante perigo de vida, enfatizavam a importância da paz. Muitos com experiência ou conhecimento de Luanda e outros centros urbanos realçam a importância da terra e da agricultura, embora dificilmente seja suficiente para sobreviver. E praticamente toda a gente procura conforto e apoio numa das muitas igrejas nas comunidades e nos bairros próximos – estando o sentimento mais amplo de “comunidade” em processo de enfraquecimento sob a pressão da pobreza e da falta de esperança.

Conclusões

Na literatura clássica sobre pobreza, a pobreza rural é muitas vezes vista como mais grave do que a pobreza urbana em termos materiais – mas com uma rede de segurança mais forte na forma de instituições tradicionais e redes sociais. Em Kalandula, a marginalização de longa duração na forma de décadas de guerra e a economia política contemporânea desgastaram seriamente esta rede de segurança. De facto, as comunidades que estudámos em grande medida regressaram ao passado, na forma de uma revitalização das instituições tradicionais na ausência de um estado activo e actuante e de uma economia de troca directa envolvendo comerciantes urbanos na qual as pessoas são facilmente exploradas.

Literatura:

Administração Municipal de Kalandula (2013). Perfil Municipal de Kalandula.

INE (2013). Inquérito Integrado Sobre o Bem-Estar da População, IBEP. Relatório - Vol. III. Perfil da Pobreza. Luanda: Instituto Nacional de Estatística.

INE (2016). Resultados Definitivos do Recenseamento Geral da População e da Habitação de Angola 2014. Luanda: Instituto Nacional de Estatística.

Tvedten, Inge e Gilson Lázaro (2016). “Urban Poverty and Inequality in Luanda, Angola”. CMI Brief Volume 15, Number 17. Bergen: Chr. Michelsen Institute.

UNICEF (2015). Situation Analysis. Children and Women in Angola. Luanda: UNICEF